A psicóloga Luciana Slaviero Pinheiro Cerdeira fala sobre a importância do “Brincar”

25/05/2018 - 20:00 | Por: Circolare
Luciana Slaviero Pinheiro Cerdeira é psicóloga, psicanalista, membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Instituto Sedes Sapiente e, uma vez por mês, ela vai escrever aqui no Circolare sobre crianças e adolescentes.

São vários os temas abordados: “A experiência amorosa”, “As tecnologias na vida cotidiana, “Os sonhos”,  “Depressão pós parto”, “Agressividade da criança: destruição ou construção?”.

O primeiro artigo de Luciana é sobre a importância de brincar. Sim, brincar é coisa séria e o tema merece atenção!

“Brincando Criamos o Mundo”

“O máximo de maturidade que
um homem pode atingir é quando
ele tem a seriedade que têm
 as crianças quando brincam“. 

    Nietzsche

Este pensamento de Nietzsche nos traz a seguinte questão: Brincar é coisa séria? Paradoxalmente, sim! E quantas coisas acontecem quanto ao desenvolvimento cognitivo, emocional e maturacional da criança quando ela brinca! Basta observar crianças brincando, totalmente absorvidas e concentradas, para perceber que algo de grande importância está acontecendo.

Convido, então, para um mergulho no sentido e no significado do brincar.

Brincar conduz ao vínculo e aos relacionamentos grupais
. A palavra brincar tem como radical a palavra “brinco”, que vem do latim “vinculu”. Brincar constitui-se numa atividade de ligação ou vínculo com algo em si mesmo e com o outro.  Ao brincar com alguém, a criança introduz seu próprio brincar e experiencia a aceitação e a não aceitação de idéias de outras pessoas. Está assim, preparando o caminho para um viver compartilhado, um relacionar-se com o outro e com a vida. 


Brincar é natural e universal. Ultrapassa fronteiras, culturas, religiões e idades. Embora o brincar muitas vezes seja associado a uma atividade da criança, uma forma de expressão e comunicação numa fase onde não se possui o domínio da linguagem, aplica-se também a adultos. O brincar manifesta-se de diferentes formas e até na comunicação verbal: na escolha das palavras, nas entonações de voz, no senso de humor.  Será que o adulto se permite brincar consigo mesmo ou com os outros? Quantas vezes respondemos afirmativamente à pergunta das crianças: “Brinca comigo?”. Podemos estar perdendo oportunidades preciosas de viver criativamente e de compartilhar este viver criativo com aqueles que amamos.

O primeiro brincar da criança é com seu próprio corpo. Ao brincar, a criança constrói o seu próprio corpo. Ao longo do primeiro ano de vida da criança, já é possível observar o brincar quando o bebê se lambuza com muito entusiasmo, formando uma película homogênea com uma mistura de muco, baba, sopa, remelo…  Esta película homogênea, formada por estes episódios de lambuzeira, passa a ser uma parte do próprio corpo do bebê, uma pele que o circunscreve e traz a sensação de contorno e de limite. Famílias muito preocupadas com a higiene podem dificultar esta experiência constitutiva. 


Ao brincar, a criança vive uma experiência criativa na relação com o mundo.
  E é somente sendo criativo que o indivíduo descobre-se a si mesmo. Quando brinca, a criança experimenta a si mesma, surpreendendo-se através de seus gestos autênticos. Além disso, exercita a sua imaginação, impulsos e fantasias, buscando sentidos e significados próprios, o que é fundamental para a produção de conhecimento.

A criatividade da criança, porém, pode ser facilmente inibida por um pai ou uma mãe que, apesar das melhores das intenções, saiba demais, bloqueando sua espontaneidade. Sem a espontaneidade, o indivíduo se assemelha a um robô, que está submetido à outra pessoa ou a uma máquina. E esta submissão traz um sentimento de inutilidade, uma vez que o mundo é sentido apenas como algo a que se ajustar e se adaptar. Quantas vezes nós adultos nos sentimos assim ao realizarmos atividades que vão de encontro ao desejo do outro, mas que nada têm a ver com nós mesmos!

É importante lembrar que a criatividade aqui referida não é apenas aquela da criação de grandes obras de arte glorificadas pelo público, mas sim se relaciona a um viver criativo, autêntico, a um colorido em relação à vida, ao estar vivo, à sensação de que “a vida é digna de ser vivida”, conforme definido pelo psicanalista inglês Donald Winnicott. Esta sensação é construída a partir da qualidade das primeiras relações da criança com seu ambiente, mãe, pai e cuidadores.


Ao brincar, a criança elabora seu mundo interno através da realidade externa.
Através do brincar a criança vive o interjogo entre o mundo interno e o mundo externo. A criança manipula objetos da realidade externa para tematizar questões de sua realidade psíquica. Por exemplo, quando a criança brinca de “deixar cair coisas” ou de “esconde-esconde”, pode estar brincando de desinvestimento, desprendimento do outro, separação, desaparecimento e aparecimento.

Brincar é próprio da saúde e muitas vezes autocurativo. Brincar, essencialmente, satisfaz. O brincar é um lugar de repouso. Para que a criança possa brincar, ela precisa poder estar só consigo mesma, com a confiança de que os adultos que ama estarão lá quando ela precisar deles.

Brincar, portanto, não é pouca coisa e quando não é possível, sentimos um imenso pesar . Os verdadeiros encontros se dão na sobreposição de duas áreas do brincar, neste terceiro espaço transicional de intimidade e sem demandas, entre um e outro: mãe e bebê, pais e filhos, marido e mulher, enamorados, amigos,  parceiros de vida… 

Brincando criamos nós mesmos e o mundo em que vivemos!

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