Grupo de jornalistas negros de BH faz carta aberta a Gloria Maria após polêmicas

02/10/2020 - 12:00 | Por: Circolare


Na semana passada, 25, a jornalista Gloria Maria disse em uma live com Joyce Pascowitch que atualmente existe uma cultura de que “nada pode” e que acha isso “um saco”. “Hoje tudo é racismo, preconceito, assédio e está chato. Estou há mais de 40 anos na televisão, já fui paquerada, mas nunca me senti assediada moralmente”, afirmou.

Ela também relembrou que é chamada de “neguinha” por seus colegas de trabalho, de uma forma que segundo sua visão, é de cunho afetuoso.

As declarações ganharam bastante repercussão e, o coletivo de jornalistas Lena Santos, decidiu realizar uma carta aberta a jornalista, divulgada nessa quinta (1º).

Com mais de 50 profissionais negros da comunicação, o coletivo de Belo Horizonte que carrega o nome da jornalista Lena Santos – que ocupou a bancada do Jornal Hoje local nos anos 1980 – escreveu o texto chamado “Crítica e afeto”, que tem como propósito discordar das declarações feitas por Gloria Maria, e abrir um canal de diálogo com a apresentadora.
“Temos o desejo que chegue a ela e a todas as pessoas envolvidas com a questão racial no Brasil. A carta foi feita a muitas mãos, de pessoas que têm a Gloria como grande referência. Temos afeto e carinho por ela, mas o nosso pensamento não vai ao encontro um do outro”, disse a jornalista Etiene Martins.

“Glória, somos um coletivo de jornalistas negros que tem o nome de Lena Santos, uma mineira que ocupou a bancada do Jornal Hoje – edição Minas, dividindo a apresentação com Chico Pinheiro nos anos de 1980. Nosso coletivo conta com mais de 50 jornalistas, de diferentes gerações, que ocuparam todas as funções, da reportagem à edição, passando pela apresentação. Somos homens e mulheres negros que acreditamos que o jornalismo é lugar pra gente sim. E temos certeza que parte desse sonho foi muito acalentado por vermos a sua imagem na maior emissora de TV do Brasil, por vermos a sua desenvoltura à frente das câmeras e o seu texto leve, que nos conduzia a tantos lugares do mundo. Você foi e segue como espelho para muitas mulheres negras e nos orgulhamos de sua carreira.

Embora não concordemos com seu posicionamento, respeitamos e admiramos sua trajetória. Escrevemos, portanto, essa carta para discordar de você sobre a declaração na live com a jornalista Joyce Pascowitch, no último dia 26. Entendemos que nem todas as mulheres negras dispuseram das mesmas oportunidades de trabalho que você. E não há demérito na trajetória delas. Há muita luta. Todas as estatísticas são contra essas mulheres.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 16 de maio, aponta que o desemprego avançou para pessoas pretas de 13,5% para 15,2% para pessoas pardas e 12,6% para 14%, no quarto trimestre de 2019, enquanto o das brancas subiu de 8,7% para 9,8%. Também há uma desigualdade entre os gêneros: a taxa de desocupação foi estimada em 10,4% para os homens e 14,5% para as mulheres.

O Atlas da Violência 2020 mostra que a taxa de homicídios de negros cresceu 11,5%, de 2008 a 2018, enquanto a de não negros caiu 12%. Os homens negros têm risco de morte 74% maior e para mulheres negras 64,4% se comparados aos casos de homicídio de indivíduos não negros. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes aponta que para a população negra é de 37,8 mortes enquanto para os não negros é 13,9. Em 2018, os negros representaram 75,7% das vítimas de homicídios.

Há séculos somos transformados em estatísticas e, além disso, precisamos lidar com pessoas que ignoram e desmerecem todas as mazelas enraizadas em nós, deixadas pela escravidão. Por isso mesmo aqui estamos nós, totalmente impactados pela posição que você escolheu ter na situação mencionada no início desta carta, ou foi levada a ter, relativizando toda essa luta. O racismo é violento a ponto de nos doutrinar, fazendo com que pensemos que, de certa forma, a nossa luta não é legítima, porque “tem muito mimimi”. Estamos aqui na condição de coletivo, lutando por nós, pelos nossos e pelos que estão por vir, para que estes tenham um caminho de igualdade e acesso e que vivam em um mundo em que racismo seja coisa do passado. Você é uma das principais referências que temos no jornalismo, alguém como nós, por isso reiteramos o nosso respeito. Mas, com ele, o pedido de que se junte às urgências que ainda nos assolam.

Reiteramos nosso carinho e admiração por você e acreditamos que receberá essa mensagem como uma troca de ideias entre iguais. Sem tom de censura ou intolerância da nossa parte.

Um fraterno abraço do Coletivo Lena Santos.”

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