A psicóloga Luciana Slaviero Pinheiro Cerdeira fala sobre “A força dos nossos instintos”

12/04/2019 - 18:00 | Por: Circolare


Luciana Slaviero Pinheiro Cerdeira
 é psicóloga, psicanalista, membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Instituto Sedes Sapiente e, uma vez por mês, ela escreve aqui no Circolare sobre crianças, adolescentes e outros temas interessantes sobre nossa vida psíquica.

O quinto artigo de Luciana é sobre os instintos.

“A força dos nossos instintos”

Desde o nascimento, o amor instintivo voraz do bebê busca a satisfação das necessidades vitais através do impulso em direção à vida. 

Uma jovem mãe contou emocionada que, quando seu bebê recém nascido foi colocado em seus braços ainda na sala de parto, percebeu que ele movimentava sua boca aberta em busca de algo e ao aconchegá-lo em seu peito, o bebê agarrou o bico do seu seio e começou a sugar com força.  

Inicialmente o bebê não existe como unidade, esta é uma condição a ser alcançada em seu desenvolvimento maturacional. Ele vive desde a gestação experiências de motilidade provenientes de certos impulsos, que vão sendo registradas em sua memória corporal, como quando chuta a barriga da mãe ao movimentar-se. Seus movimentos corporais frente ao obstáculo “barriga” contribuem para a percepção de um limite entre o corpo do bebê e o corpo da mãe, parte de um longo processo que envolverá futuramente a distinção entre “o que é e o que não é o Eu”.

Através dos impulsos de vida que envolvem diferentes movimentos, o bebê participa de seu nascimento com o movimento de sua cabeça em direção a uma nova e desconhecida posição e com a mudança de estado de não respiração para o estado de respiração. 

Após o nascimento a impulsividade e a vitalidade do bebê são expressas ao mamar, movimentar-se, esbarrar em objetos e agarrá-los. Assim o bebê vai acumulando uma série de experiências pessoais primitivas a partir de seus próprios movimentos num caminho de descoberta de si mesmo e do ambiente. Se sua impulsividade é inibida, a experiência pessoal de integração num si-mesmo pode ser prejudicada.

A criança pode viver seus impulsos de diferentes maneiras. Ela pode tornar-se excessivamente séria e tensa na tentativa de mantê-los “dentro dela” através de um controle interno, o que poderia resultar em retraimento, depressão, medo e ausência de vitalidade. Ou pode projetá-los para fora do eu, passando a temer que algo ou alguém do mundo externo a destrua e ficando permanentemente a espera de dificuldades na vida, o que pode levar à inibição e ao retraimento como defesas ou mesmo à paranóia.Pode ainda ir  em busca de alivio dramatizando seu mundo interno no mundo externo, na esperança de encontrar um limite, um contorno do ambiente, sem sufocação séria dos instintos. 

Se mobilizados a serviço do ódio, do medo e da frustração, os impulsos podem ter um potencial destrutivo. Por outro lado, podem ser constitutivos e importante fonte de vida se canalizados para o brincar, para a arte, para os jogos, para o trabalho, para a relação com o outro e situações que possibilitam vivacidade, troca, fertilidade, criação e realização.

Para que se possa reconhecer e tolerar os próprios impulsos são necessárias experiências construtivas e criativas e o desenvolvimento da capacidade de preocupar-se e importar-se com o outro e de sentir e aceitar a responsabilidade pela própria natureza e vida instintual. Para tanto é necessária a experiência com um ambiente que tenha sobrevivido de forma viva e empática à vida instintual do bebê, possibilitando um grau de integração do ego onde a ambivalência pode ser alcançada, tornando possível a idéia de amar e odiar simultaneamente um mundo fora do controle onipotente do sujeito. 

O processo de amadurecimento pessoal desde a infância, passando pela adolescência e entrando na vida adulta envolve luto, abdicação, conciliação e superação e a possibilidade de conviver com a ambigüidade da natureza humana.  

Através da canalização dos impulsos e anseios de uma forma mais construtiva e conciliadora na relação com o mundo, é possível experimentar o potencial de criar, empreender, compartilhar e amar. 

A psicóloga Luciana Slaviero Pinheiro Cerdeira fala sobre “Sonhos”

14/12/2018 - 20:00 | Por: Circolare


Luciana Slaviero Pinheiro Cerdeira
 é psicóloga, psicanalista, membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Instituto Sedes Sapiente e, uma vez por mês, ela vai escrever aqui no Circolare sobre crianças, adolescentes e outros temas interessantes sobre nossa vida psíquica.

O quarto artigo de Luciana é sobre sonhos.

“Sonhos…mistério e revelação?”

“O tema dos sonhos nos fascina e vem sendo representado de diferentes formas na pintura, literatura, teatro, cinema, música, religião, etc. Salvador Dali referia-se a suas pinturas como “fotografias de sonhos pintadas à mão”. Através do surrealismo e da liberdade poética criativa, Dali busca na atemporalidade e irracionalidade do inconsciente os ingredientes para o quadro “A persistência da memória” (1931) onde relógios derretidos expressam que o tempo da memória e dos sonhos subverte o tempo cronológico. Dali era um grande admirador de Sigmund Freud, o pai da psicanálise, e leu a “A Interpretação dos Sonhos” (1900) enquanto ainda era um estudante de arte em Madri. Dali e Freud se encontraram em Londres em 19 de julho de 1938, quando Freud havia recém chegado da Viena ocupada pelos nazistas. Para celebrar os 80 anos deste encontro, o Freud Museum exibe a exposição “Dali and the Metamorphosis of Narcissus” (até 24 de fevereiro de 2019) para quem  tiver o interesse e a oportunidade de conhecer mais sobre a conexão entre duas das mais extraordinárias e brilhantes figuras do século 20. 

Sigmund Freud rompeu estigmas de sua época quando retomou o tema dos sonhos de forma corajosa a partir dos próprios sonhos e de seus pacientes, introduzindo novos paradigmas na compreensão da linguagem dos sonhos e sinalizando que “o sonho é a estrada real que conduz ao inconsciente“. 

O sonho é o guardião do sono, sua matéria prima são os processos que ocorrem livremente no inconsciente incluindo realização de desejos, repetição de situações traumáticas e resíduos do dia que, condensados e deslocados, figuram como construtores do sonho. Devido à redução da censura durante o sonho, torna-se maior a comunicação entre o sistema pré-consciente e inconsciente que funciona em paralelo e possui leis próprias muito distantes de qualquer tentativa de controle da mente consciente!

O esquecimento é motivado  e quando o conteúdo sonhado surge com força suficiente para ultrapassar a barreira da censura e é lembrado, ele está disfarçado, deformado, distorcido. A sensação ao lembrar de um sonho pode ser de grande confusão, o que pode evocar ansiedade, estranhamento, medo, vergonha… Não é incomum ouvir a frase: “eu tive um sonho muito louco!”. Nos sonhos pode tudo e cabem as contradições! Através da linguagem imagética, que é uma linguagem sem impedimentos e sem exclusões, o sonho vai encontrando maneiras de se expressar. 

Os sonhos são geralmente curtos, com poucas imagens e aparentemente sem sentido. Já os pensamentos que podem surgir relacionados a essas imagens numa análise pessoal através da associação livre são de uma grande riqueza. Para cada elemento do conteúdo do sonho é possível produzir um imenso número de associações e significações, suas imagens representam apenas um aspecto específico dos objetos que representam. Podem ser interpretados de infinitas formas a cada vez que são lembrados, pensados e compartilhados pelo sonhador, preservando sempre aspectos obscuros, encobertos e enigmáticos. 

Os sonhos são reveladores pois nos aproximam de nós mesmos e de nossa singularidade e demonstram a complexidade dos fenômenos mentais. A experiência emocional vivida na análise pessoal colabora no processo de busca de significado propiciando a ampliação da consciência, o contato com as emoções que mobilizam a memória afetiva e a aventura singular em direção ao estranho e ao mesmo tempo familiar em si mesmo. Esta experiência associada a redistribuição da energia psíquica leva a um aumento da potência do indivíduo uma vez que a energia liberada poderá ser direcionada a outros aspectos da vida e a um viver mais livre e criativo.”

A psicóloga Luciana Slaviero Pinheiro Cerdeira fala sobre “Tornar-se mãe”

12/10/2018 - 20:00 | Por: Circolare


Luciana Slaviero Pinheiro Cerdeira é psicóloga, psicanalista, membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Instituto Sedes Sapiente e, uma vez por mês, ela vai escrever aqui no Circolare sobre crianças, adolescentes e outros temas interessantes sobre nossa vida psíquica.

O terceiro artigo de Luciana é sobre a primeira gestação.

“Tornar-se mãe”

“A maternidade marca uma nova fase na vida da mulher. A primeira gestação  envolve grandes transformações e sentimentos intensos, medos e expectativas. É um período de expansão e redefinição de papéis e funções uma vez que a gestante, além de filha e mulher, passa a ser mãe. 

O desejo de ser mãe pode surgir na menina por meio da identificação com sua mãe ou com figuras maternais com quem teve contato. A fantasia de tornar-se cessora, e não apenas receptora dos cuidados maternos, é nutrida pela menina através de brincadeiras onde aspectos importantes da função materna estão sendo introjetados.

Tornar-se mãe é um processo complexo que inclui dimensões conscientes e inconscientes como o desejo da mulher de completude, de experimentar a potência e a produtividade de seu corpo, de dar continuidade à sua própria existência e de realizar os próprios ideais através de seu bebê. Além disso, a experiência viva e fértil de um encontro amoroso e criativo, a partir do qual o bebê é gerado, pode ser experimentada.

A mulher relaciona-se com seu bebê a partir de fantasias e expectativas baseadas em seu mundo interno, em suas primeiras relações e em suas necessidades conscientes ou não. Durante os meses de gestação, mãe e bebê são gestados. No parto de um bebê, nasce também uma mãe.

Logo após o nascimento, ocorre um período de transição que também pode ser chamado de “quarto trimestre da gravidez” marcado pela cesura do nascimento, onde mãe e bebê vivem uma experiência primordial que será de grande importância para ambos. 

A mãe um dia já foi bebê e seu psiquismo contém marcas deixadas por essa experiência que permeiam o exercício da maternidade e a comunicação silenciosa e não verbal da dupla mãe-bebê, que em toda sua complexidade envolve a identificação de semelhanças e percepção de diferenças por parte da mãe e a leitura, tradução e acolhimento das necessidades do bebê. O encontro mãe-bebê pode ser muito gratificante, mas não é livre de sofrimentos, transbordamentos, tentativas, acertos e erros. Neste momento, a intuição materna pode contribuir mais do que a opinião de especialistas e livros, por melhores que sejam as intenções.

Durante a gestação e nos primeiros meses de vida do bebê, ocorre um aumento da sensibilidade da mulher e uma diminuição das defesas. De maneira normal e temporária, a mulher retira seu interesse do mundo externo para dedicar-se e adaptar-se às necessidades de seu bebê totalmente dependente neste momento inicial, num estado chamado pelo psicanalista inglês Donald Winnicott de “preocupação materna primária da mãe dedicada comum”. Neste período, pode ser observado desde um aumento da capacidade perceptiva e criativa da mulher até uma tendência maior para a depressão, acompanhada de um sentimento de vulnerabilidade. O suporte ambiental é de vital importância pois podem surgir quadros chamados de tristeza pós-parto (blues maternity), depressão ou ainda uma psicose puerperal, quadros com diferenças importantes que demandam cuidados uma vez que repercutem na  relação, na qualidade do vínculo e na saúde mental mãe-bebê em maior ou menor grau, dependendo do tempo de permanência e da intensidade dos sintomas tais como: crises de choro, ansiedade, fadiga, preocupações excessivas com o bebê, perda do prazer, desalento, irritabilidade, hipocondria, sentimentos de culpabilidade, inadequação e incapacidade quanto à maternidade, e, em quadros mais severos, alterações importantes de humor e cognição, ideações delirantes, alucinações.

É fundamental um ambiente sensível e continente das angústias da mulher, possibilitando um espaço que permita que sentimentos contraditórios possam ser acolhidos diante de um período de intensificação da ambivalência de afetos em que aspectos regressivos e primitivos estão sendo mobilizados, reconhecendo a necessidade de um tempo para adaptação e resgate da segurança nos objetos internos, no saber intuitivo e na capacidade de ser mãe. 

Em alguns casos é importante buscar um suporte psicoterapêutico neste momento de notável mobilização psíquica da mulher para que se possa retomar o caminho do desenvolvimento emocional e físico sadios da dupla mãe-bebê, acolhendo os aspectos perturbadores da relação e permitindo um maior alívio dos processos dolorosos que a acometem.”

A psicóloga Luciana Slaviero Pinheiro Cerdeira fala sobre a importância do “Brincar”

25/05/2018 - 20:00 | Por: Circolare
Luciana Slaviero Pinheiro Cerdeira é psicóloga, psicanalista, membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Instituto Sedes Sapiente e, uma vez por mês, ela vai escrever aqui no Circolare sobre crianças e adolescentes.

São vários os temas abordados: “A experiência amorosa”, “As tecnologias na vida cotidiana, “Os sonhos”,  “Depressão pós parto”, “Agressividade da criança: destruição ou construção?”.

O primeiro artigo de Luciana é sobre a importância de brincar. Sim, brincar é coisa séria e o tema merece atenção!

“Brincando Criamos o Mundo”

“O máximo de maturidade que
um homem pode atingir é quando
ele tem a seriedade que têm
 as crianças quando brincam“. 

    Nietzsche

Este pensamento de Nietzsche nos traz a seguinte questão: Brincar é coisa séria? Paradoxalmente, sim! E quantas coisas acontecem quanto ao desenvolvimento cognitivo, emocional e maturacional da criança quando ela brinca! Basta observar crianças brincando, totalmente absorvidas e concentradas, para perceber que algo de grande importância está acontecendo.

Convido, então, para um mergulho no sentido e no significado do brincar.

Brincar conduz ao vínculo e aos relacionamentos grupais
. A palavra brincar tem como radical a palavra “brinco”, que vem do latim “vinculu”. Brincar constitui-se numa atividade de ligação ou vínculo com algo em si mesmo e com o outro.  Ao brincar com alguém, a criança introduz seu próprio brincar e experiencia a aceitação e a não aceitação de idéias de outras pessoas. Está assim, preparando o caminho para um viver compartilhado, um relacionar-se com o outro e com a vida. 


Brincar é natural e universal. Ultrapassa fronteiras, culturas, religiões e idades. Embora o brincar muitas vezes seja associado a uma atividade da criança, uma forma de expressão e comunicação numa fase onde não se possui o domínio da linguagem, aplica-se também a adultos. O brincar manifesta-se de diferentes formas e até na comunicação verbal: na escolha das palavras, nas entonações de voz, no senso de humor.  Será que o adulto se permite brincar consigo mesmo ou com os outros? Quantas vezes respondemos afirmativamente à pergunta das crianças: “Brinca comigo?”. Podemos estar perdendo oportunidades preciosas de viver criativamente e de compartilhar este viver criativo com aqueles que amamos.

O primeiro brincar da criança é com seu próprio corpo. Ao brincar, a criança constrói o seu próprio corpo. Ao longo do primeiro ano de vida da criança, já é possível observar o brincar quando o bebê se lambuza com muito entusiasmo, formando uma película homogênea com uma mistura de muco, baba, sopa, remelo…  Esta película homogênea, formada por estes episódios de lambuzeira, passa a ser uma parte do próprio corpo do bebê, uma pele que o circunscreve e traz a sensação de contorno e de limite. Famílias muito preocupadas com a higiene podem dificultar esta experiência constitutiva. 


Ao brincar, a criança vive uma experiência criativa na relação com o mundo.
  E é somente sendo criativo que o indivíduo descobre-se a si mesmo. Quando brinca, a criança experimenta a si mesma, surpreendendo-se através de seus gestos autênticos. Além disso, exercita a sua imaginação, impulsos e fantasias, buscando sentidos e significados próprios, o que é fundamental para a produção de conhecimento.

A criatividade da criança, porém, pode ser facilmente inibida por um pai ou uma mãe que, apesar das melhores das intenções, saiba demais, bloqueando sua espontaneidade. Sem a espontaneidade, o indivíduo se assemelha a um robô, que está submetido à outra pessoa ou a uma máquina. E esta submissão traz um sentimento de inutilidade, uma vez que o mundo é sentido apenas como algo a que se ajustar e se adaptar. Quantas vezes nós adultos nos sentimos assim ao realizarmos atividades que vão de encontro ao desejo do outro, mas que nada têm a ver com nós mesmos!

É importante lembrar que a criatividade aqui referida não é apenas aquela da criação de grandes obras de arte glorificadas pelo público, mas sim se relaciona a um viver criativo, autêntico, a um colorido em relação à vida, ao estar vivo, à sensação de que “a vida é digna de ser vivida”, conforme definido pelo psicanalista inglês Donald Winnicott. Esta sensação é construída a partir da qualidade das primeiras relações da criança com seu ambiente, mãe, pai e cuidadores.


Ao brincar, a criança elabora seu mundo interno através da realidade externa.
Através do brincar a criança vive o interjogo entre o mundo interno e o mundo externo. A criança manipula objetos da realidade externa para tematizar questões de sua realidade psíquica. Por exemplo, quando a criança brinca de “deixar cair coisas” ou de “esconde-esconde”, pode estar brincando de desinvestimento, desprendimento do outro, separação, desaparecimento e aparecimento.

Brincar é próprio da saúde e muitas vezes autocurativo. Brincar, essencialmente, satisfaz. O brincar é um lugar de repouso. Para que a criança possa brincar, ela precisa poder estar só consigo mesma, com a confiança de que os adultos que ama estarão lá quando ela precisar deles.

Brincar, portanto, não é pouca coisa e quando não é possível, sentimos um imenso pesar . Os verdadeiros encontros se dão na sobreposição de duas áreas do brincar, neste terceiro espaço transicional de intimidade e sem demandas, entre um e outro: mãe e bebê, pais e filhos, marido e mulher, enamorados, amigos,  parceiros de vida… 

Brincando criamos nós mesmos e o mundo em que vivemos!